quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Da frágil solidariedade humana




Rubens Uchoa Cavalcanti, foi o principal agente e iniciador das publicação de livros sobre a Campanha do Quilo. Foi ele que sugeriu e tomou a frente de todas as tarefas necessárias para a publicação de "Campanha do Quilo - o Bom Combate" - uma coletânea de escritos de Elias Sobreira. Foi ele também que escreveu e publicou alguns bons livros sobre esse tema relevante.

Um dos trabalhos de sua lavra, "A Canção do Amor Fraterno" contém interessantes mensagens. Vamos reproduzir um capítulo particularmente curioso:

"Que me guiem meus animais" - Friedrich Nietzsch

Bengala típica à mão, ele esperava a oportunidade para atravessar a rua. Sereno na expectativa, era um rapaz que aparentava uns trinta anos de idade, alto, magro. De onde eu estava - segundo andar de um edificio nas proximidades - podia ter uma visão panorâmica do quadro. Tinha ido à janela - "respirar um pouco" - na pausa costumeira de uma tarefa estafante que executava, naquela tarde que chegava ao seu final, com prenúncios de uma noite premiada com um céu de pontos cintilantes.

Outras pessoas estavam na mesma tentativa daquele rapaz, tanto de um lado, como do outro da artéria, importante como escoadouro de veículos, era fácil concluir. Soa o sinal. O fluxo se faz nos dois sentidos e aqueles seres humanos - máquinas(?) - se deslocam como que assustados e temerosos, apressados mesmo. A título de observação, pusme a contemplar aquela cena, firmando minha atenção para o comportamento do rapaz, deficiente visual, que agora se dirigia a passos normais, ao ritmo de sua bengalinha, batendo com ela no chão, moderadamente, de um lado e do outro, numa frequência determinada. Podia-se dizer que ele era alvo da curiosidade dos outros passantes, que o olhavam de uma maneira especial, talvez duvidando de sua perícia em caminhar sem luz.

Num impacto, a sirene que acompanhava a sinalização pára. O semáforo ameaça mudar para o verde, todos percebem que o vermelho virá infalivelmente, para o pedestre. Alguns correm e se atropelam. Uma moça, na correria, bate com o pé, inadvertidamente, na bengala do rapaz, chutando-a à distância. Ele estaca, imobilizado pela surpresa, no meio da faixa de listras brancas. A moça, estonteada, tenta recuperar a bengala. Não o consegue. Coloca as duas mãos abertas na buca como para sufocar um grito de desespero. O rapaz se agacha e tenta, igualmente, localizar sua bengala, sem êxito na pretensão. Não o consegue. Os demais transeuntes correm para as calçadas. A faixa de pedestres abriga apenas o rapaz e a moça. Assim mesmo ela se apressa em sair dali e o rapaz fica sozinho, impassível, único na faixa. Os carros, parados aceleram abusivamente os seus motores. Alguns buzinam impacientemente. Ele resolve ficar ali, à mercê da imobilidade.

Eu, na janela, olhava tudo aquilo. Atônito, esperanto uma conclusão feliz, satisfatória. Pedi ajuda ao mundo espiritual, numa fervorosa prece. Como num rasgo de memória, veio-me à lembrança - não sei explicar porque - os nosso irmãos considerados irracionais e de um trecho que houvera lido, numa certa revista (Revista Cultura - em Braille - nr 521, junho, 1995 - Madrid - Espanha. Um mundo de ratas - José Manuel Nieves):

"Duas ratas cinzentas caminham juntas pela estreita margem de cimento contra a qual se espraiam as ondas fétidas da cidade. Cautelosas, avançam pela abertura. Sustentam com a boca um palito, cada uma por uma extremidade. Estranha conduta para uns simples roedores. Que poderia impulsioná-las a dividir tão singular objeto? A surpresa dos dois biólogos que se fizeram a mesma pergunta e decidiram capturar os animais foi maiúscula: uma das ratas era cega. A outra, por meio do palito, a estava guiando."

De um dos carros que esperavam para a retomada do trânsito desce uma jovem que o conduzia, apanha a bengala e entrega-a ao rapaz, o que lhe permite dirigir-se à calçada. Os demais carros, diante do verde que surgira à frente, saem em ritmo acelerado e por pouco um deles não atropela o rapaz. A jovem volta ao seu carro, liga-o e sai, por sua vez, calmamente.

Nas calçadas de ambos os lados, os espectadores, após instantes tão tensos, desafogam suas preocupações. Tudo volta ao normal.

Por alguns momentos permaneci perplexo, mesmo após aquele desfecho. E pensei: Por que tão frágil é a solidariedade humana?