Realizávamos habitualmente aos sábados, pela manhã, a campanha do quilo; a título de preparação, líamos trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo e das normas da campanha. Esta atividade ocorria regularmente na sede da Casa dos Humildes em Recife.
Contávamos com a participação de uns quatro ou cinco voluntários, dentre os quais o Sr. Elias Sobreira, que à época do relato que vou apresentar, tinha pouco menos de setenta anos, eu com dezessete anos e outros amigos que compareciam eventualmente.
O Sr. Sobreira normalmente dirigia os trabalhos; para prevenir uma eventual falta em decorrência de instabilidades em sua saúde e orientar eventual substituto, mantinha sobre a mesa de reuniões um roteiro da parte preparatória, que era mais ou menos assim:
02 min prece inicial
03 min leitura de O Evangelho Segundo o Espiritismo
10 min comentário do trecho lido
03 min leitura dos Dez Mandamentos, Normas ou Benefícios da Campanha do Quilo
10 min de comentário
02 min prece para saída ao campo.
Além disso, Sr. Sobreira recomendava que, no caso de sua ausência, qualquer um de nós poderia dirigir a reunião.
Particularmente me sentia preocupado, tenso, com a possibilidade de dirigir uma reunião que vinha sendo conduzida por um grande representante do Espiritismo, um quase que iluminado.
No fundo desejava que nosso orientador nunca adoecesse, assim não passaria pela contingência de ter que dirigir a campanha do quilo.
Um belo dia, cheguei uns vinte minutos antes do início da preparação. Encontrava-se no local uma senhora pertencente a elevada classe econômica. Nosso dirigente ainda não havia chegado. Entabulei um diálogo com a nova colaboradora. A conversa enveredou por comentários acerca da enchente que havia assolado Recife no ano de 1975. Vários bairros de Recife sofreram severas perdas. As águas dos Rios Capibaribe e Beberibe que cortam a capital pernambucana, receberam volumes de água muitas vezes superiores às capacidades de suas calhas. Muitas casas foram invadidas pelas águas que atingiram a altura de até dois metros. Muitos perderam todos os seus pertences, móveis, roupas, eletrodomésticos.... Nem pobres nem ricos foram poupados.
A senhora apresentava-se chorosa com as perdas decorrentes da invasão de sua rica residência pela fúria das águas. Relacionava os bens que perdera; tapetes, móveis caros, roupas, etc. Queixava-se com ênfase da destruição de suas porcelanas.... chinesas, que representavam um valor especial para ela. Ao referir-se às porcelanas, a voz ganhava uma entonação dramática. Reclamava, reclamava. Enquanto ela falava, eu consultava o relógio. Pontualidade era uma das exigências da campanha do quilo, como ensinava o Senhor Sobreira.
Enfim o relógio indicava 08h00min, solicitei à vítima da perda das porcelanas chinesas que interrompesse os comentários para iniciarmos a preparação para a campanha do quilo.
Após a prece, como de costume, abrimos aleatoriamente o Evangelho Segundo o Espiritismo e “caiu” no Capítulo XVI item 9 – “A verdadeira propriedade”. Tivemos a honra de ser brindados com a mensagem do eminente espírito Pascal, matemático e filósofo francês.
Além de sábia e bela, a mensagem foi surpreendentemente oportuna. Era uma réplica admirável às queixas da matrona injuriada.
O texto, a um só tempo curto e imensamente significativo, entre outras considerações, ensina:
“O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo. Do que encontra ao chegar e deixa ao partir goza ele enquanto aqui permanece. Forçado, porém, que é a abandonar tudo isso, não tem das suas riquezas a posse real, mas, simplesmente, o usufruto. Que é então o que ele possui? Nada do que é de uso do corpo; tudo o que é de uso da alma: a inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais. Isso o que ele traz e leva consigo, o que ninguém lhe pode arrebatar, o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo do que neste. Depende dele ser mais rico ao partir do que ao chegar, visto como, do que tiver adquirido em bem, resultará a sua posição futura. Quando alguém vai a um país distante, constitui a sua bagagem de objetos utilizáveis nesse país; não se preocupa com os que ali lhe seriam inúteis. Procedei do mesmo modo com relação à vida futura; aprovisionai-vos de tudo o de que lá vos possais servir." (O Evangelho Segundo o Espiritismo – Federação Espírita Brasileira – Tradução de Guillon Ribeiro)
Quantas lições poderiam ser deduzidas desse episódio! Como duvidar da presença de seres invisíveis que nos assistem e interferem nas nossas vidas? Que espíritos superiores dedicados à educação espiritual dos homens influenciaram a escolha da mensagem?
A campanha do quilo conta com a assistência dos benfeitores espirituais, a participação na reunião preparatória da campanha é essencial para que possamos desempenhar um trabalho com energia suficiente para portarmo-nos de acordo com as lições do Cristo. É na leitura e meditação do Evangelho que haurimos capacidade de ter paciência, tolerar, amar e perdoar.
Ao ouvir a mensagem, a nossa amiga não mais se queixou das perdas. Realizamos a campanha sem falar sobre o assunto. A lição tocou o coração.
Isoláquio Mustafa Filho
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